Psicologia

Desenvolve-se um vínculo especial entre o cliente e o terapeuta, no qual existe desejo sexual e agressão. Sem essas relações, a psicoterapia é impossível.

“Encontrei meu terapeuta por acaso, na internet, e imediatamente percebi que era ele”, diz Sofia, 45 anos, que faz terapia há seis meses. – A cada sessão ele me surpreende; rimos juntos, quero saber mais sobre ele: ele é casado, tem filhos. Mas os psicanalistas evitam falar sobre os detalhes de suas vidas pessoais. “Eles preferem manter uma posição de neutralidade, que Freud considerava a base do tratamento psicanalítico”, observa a psicanalista Marina Harutyunyan. Permanecendo como uma figura neutra, o analista permite que o paciente fantasie livremente sobre si mesmo. E isso dá origem a uma transferência de sentimentos no espaço e no tempo, que é chamada de transferência.1.

Compreendendo fantasias

Existe uma noção popular de psicanálise (e a transferência como uma parte importante dela) que extraímos da cultura pop. A imagem de um psicanalista está presente em muitos filmes: «Analyze This», «The Sopranos», «The Couch in New York», «Color of Night», quase em todos os filmes de Woody Allen. “Essa visão simplista nos leva a acreditar que o cliente vê o terapeuta como mãe ou pai. Mas isso não é inteiramente verdade”, especifica Marina Harutyunyan. “O cliente transfere para o analista não a imagem da mãe real, mas uma fantasia sobre ela, ou talvez uma fantasia sobre algum aspecto dela.”

O cliente comete o erro de confundir o terapeuta com o objeto de seus sentimentos, mas seus próprios sentimentos são reais.

Assim, a «mãe» pode transformar-se numa madrasta malvada, que deseja que o filho morra ou o atormenta, e numa mãe bondosa e impecavelmente amorosa. Também pode ser representado em parte, na forma da fantasia de um seio ideal e sempre disponível. O que determina qual fantasia particular do cliente será projetada no psicanalista? “Sobre qual é o seu trauma, onde a lógica do desenvolvimento de sua vida foi violada”, explica Marina Harutyunyan, “e qual é exatamente o centro de suas experiências e aspirações inconscientes. Seja como um único «feixe de luz» ou como «feixes» separados, tudo isso se manifesta numa longa terapia analítica.

Com o tempo, o cliente descobre e toma consciência de suas fantasias (relacionadas às experiências da infância) como causa de suas dificuldades no presente. Portanto, a transferência pode ser chamada de força motriz da psicoterapia.

Não só amor

Solicitado pelo analista, o cliente começa a compreender seus sentimentos na transferência e a entender com o que eles estão conectados. O cliente comete o erro de confundir o terapeuta com o objeto de seus sentimentos, mas os próprios sentimentos são reais. “Não temos o direito de contestar a natureza do amor “verdadeiro” na paixão, que se manifesta no tratamento analítico”, escreveu Sigmund Freud. E ainda: “Esse enamoramento consiste em novas edições de traços antigos e repete reações infantis. Mas esta é uma característica essencial de qualquer amor. Não há amor que não repita o padrão da criança.2.

O espaço terapêutico funciona como um laboratório onde damos vida aos fantasmas do passado, mas sob controle.

A transferência gera sonhos e apoia o desejo do cliente de falar de si mesmo e de se compreender para isso. No entanto, muito amor pode interferir. O cliente passa a evitar confessar tais fantasias, o que, do seu ponto de vista, o tornará menos atraente aos olhos do terapeuta. Ele esquece seu propósito original – ser curado. Portanto, o terapeuta traz o cliente de volta às tarefas da terapia. “Meu analista me explicou como funciona a transferência quando confessei meu amor por ele”, lembra Lyudmila, de 42 anos.

Quase automaticamente associamos a transferência a estar apaixonado, mas existem outras experiências de transferência que começam na primeira infância. “Afinal, não se pode dizer que uma criança ama os pais, isso é apenas parte dos sentimentos”, enfatiza Marina Harutyunyan. — Ele depende dos pais, tem medo de perdê-los, são figuras que evocam emoções fortes, e não apenas positivas. Portanto, o medo, a raiva, o ódio surgem na transferência. E aí o cliente pode acusar o terapeuta de surdez, incompetência, ganância, considerá-lo responsável pelos seus fracassos… Isso também é uma transferência, só que negativa. Às vezes é tão forte que o cliente deseja interromper o processo terapêutico. A tarefa do analista neste caso, como no caso da paixão, é lembrar ao cliente que seu objetivo é a cura e ajudá-lo a fazer dos sentimentos o objeto de análise.

O terapeuta precisa «gerir» a transferência. “Esse controle consiste no fato de ele agir de acordo com os sinais dados inconscientemente pelo cliente, quando nos coloca na posição de sua mãe, de seu irmão, ou experimenta o papel de pai tirano, obrigando-nos a ser criança , que ele próprio era”, explica a psicanalista Virginie Meggle (Virginie Meggle). — Estamos caindo nesse jogo. Agimos como se. Durante a terapia, estamos num palco tentando adivinhar os pedidos silenciosos de amor. Não respondê-las para que o cliente encontre seu caminho e sua voz.” Esta tarefa exige que o psicoterapeuta experimente um equilíbrio desconfortável.

Devo ter medo da transferência?

Para alguns clientes, a transferência e o apego ao terapeuta são apreensivos. “Eu faria psicanálise, mas tenho medo de vivenciar uma transferência e sofrer novamente com um amor não correspondido”, admite Stella, de 36 anos, que quer procurar ajuda após o rompimento. Mas não há psicanálise sem transferência.

“Você precisa passar por esse período de dependência para que, semana após semana, você volte sempre e converse”, está convencida de Virginie Meggle. “Os problemas da vida não podem ser curados em seis meses ou de acordo com um livro de psicologia.” Mas há um pouco de bom senso na cautela dos clientes: os psicoterapeutas que não passaram por psicanálise suficiente podem, de fato, não ser capazes de lidar com a transferência. Ao responder aos sentimentos do cliente com os seus próprios sentimentos, o terapeuta corre o risco de violar os seus limites pessoais e destruir a situação terapêutica.

“Se o problema do cliente se enquadra na área do subdesenvolvimento pessoal do terapeuta, então este pode perder a compostura, Marina Harutyunyan esclarece. “E em vez de analisar a transferência, o terapeuta e o cliente a representam.” Neste caso, a terapia não é possível. A única saída é pará-lo imediatamente. E para o cliente - recorrer a outro psicanalista em busca de ajuda, e para o terapeuta - recorrer à supervisão: discutir o seu trabalho com colegas mais experientes.

Treinamento do cliente

Se nossas histórias de amor habituais são ricas em paixões e decepções, vivenciaremos tudo isso no processo de terapia. Pelo seu silêncio, pela sua recusa em responder aos sentimentos do cliente, o analista provoca deliberadamente o despertar de fantasmas do nosso passado. O espaço terapêutico funciona como um laboratório onde invocamos os fantasmas do passado, mas sob controle. Para evitar a repetição dolorosa de situações e relacionamentos passados. A transferência no sentido exato da palavra é observada na psicanálise e nas formas clássicas de psicoterapia que surgiram a partir da psicanálise. Começa quando o cliente acredita ter encontrado uma pessoa capaz de compreender a causa de seus problemas.

A transferência pode ocorrer antes mesmo da primeira sessão: por exemplo, quando um cliente lê um livro de seu futuro psicoterapeuta. No início da psicoterapia, a atitude em relação ao terapeuta é na maioria das vezes idealizada, ele é visto pelo cliente como um ser sobrenatural. E quanto mais o cliente sente progresso, mais ele valoriza o terapeuta, o admira, às vezes até quer lhe dar presentes. Mas à medida que a análise avança, o cliente torna-se mais consciente dos seus sentimentos.

«O analista o ajuda a processar os nós que estão amarrados no inconsciente, não são compreendidos e não refletidos”, lembra Marina Harutyunyan. – Um especialista no processo de sua formação psicanalítica, trabalhando com colegas mais experientes, desenvolve uma estrutura analítica especial da mente. O processo terapêutico ajuda a desenvolver uma estrutura semelhante no paciente. Gradualmente, o valor passa do psicanalista como pessoa para o processo de seu trabalho conjunto. O cliente fica mais atento a si mesmo, passa a se interessar por como funciona sua vida espiritual e a separar suas fantasias dos relacionamentos reais. A consciência cresce, surge o hábito da auto-observação e o cliente necessita cada vez menos de análises, tornando-se um “analista de si mesmo”.

Ele entende que as imagens que experimentou no terapeuta pertencem a ele e à sua história pessoal. Os terapeutas muitas vezes comparam esta fase ao momento em que os pais liberam a mão da criança para permitir que ela ande sozinha. “O cliente e o analista são pessoas que realizaram juntos um trabalho importante, profundo e sério”, diz Marina Harutyunyan. – E um dos resultados desse trabalho é justamente que o cliente não precisa mais da presença constante de um analista no seu dia a dia. Mas o analista não será esquecido e não se tornará uma figura passageira.” Sentimentos e memórias calorosas permanecerão por muito tempo.


1 «Transferência» é o equivalente russo do termo «transferência». A palavra «transferência» foi usada em traduções pré-revolucionárias das obras de Sigmund Freud. Qual dos termos é usado com mais frequência na atualidade, é difícil dizer, talvez da mesma forma. Mas preferimos a palavra «transferência» e no futuro no artigo iremos utilizá-la.

2 Z. Freud «Notas sobre o amor transferencial». A primeira edição apareceu em 1915.

Não há psicanálise sem transferência

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