Psicologia

Obsessão, dupla personalidade, alter ego sombrio... A dupla personalidade é um tema inesgotável para thrillers, filmes de terror e dramas psicológicos. No ano passado, as telas lançaram outro filme sobre isso — «Split». Decidimos descobrir como a imagem “cinemática” reflete o que acontece na cabeça de pessoas reais com diagnóstico de “múltipla personalidade”.

Em 1886, Robert Louis Stevenson publicou The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde. Ao “engatar” um monstro depravado no corpo de um respeitável cavalheiro, Stevenson conseguiu mostrar a fragilidade das ideias sobre a norma que existiam entre seus contemporâneos. E se todo homem do mundo, com sua educação e maneiras impecáveis, dormisse seu próprio Hyde?

Stevenson negou qualquer ligação entre os eventos da obra e a vida real. Mas no mesmo ano, foi publicado um artigo do psiquiatra Frederic Mayer sobre o fenômeno da «personalidade múltipla», onde mencionou o caso conhecido na época — o caso de Luis Vive e Felida Isk. Coincidência?

A ideia de coexistência e luta de duas (e às vezes mais) identidades de uma pessoa atraiu muitos autores. Tem tudo o que você precisa para um drama de primeira classe: mistério, suspense, conflito, desfecho imprevisível. Se você cavar ainda mais fundo, motivos semelhantes podem ser encontrados na cultura popular – contos de fadas, lendas e superstições. Possessão demoníaca, vampiros, lobisomens – todas essas tramas estão unidas pela ideia de duas entidades que tentam alternadamente controlar o corpo.

A sombra é uma parte da personalidade que é rejeitada e suprimida pela própria personalidade como indesejável.

Muitas vezes a luta entre eles simboliza o confronto entre os lados «claro» e «escuro» da alma do herói. É exatamente isso que vemos na linha de Gollum/Smeagol de O Senhor dos Anéis, um personagem trágico, moral e fisicamente desfigurado pelo poder do anel, mas retendo os resquícios da humanidade.

Quando o criminoso está na cabeça: uma história real

Muitos diretores e escritores, através da imagem de um «eu» alternativo, procuraram mostrar o que Carl Gustav Jung chamou de Sombra – uma parte da personalidade que é rejeitada e suprimida pela própria personalidade como indesejável. A sombra pode ganhar vida em sonhos e alucinações, assumindo a forma de um sinistro monstro, demônio ou parente odiado.

Jung via como um dos objetivos da terapia incorporar a Sombra na estrutura da personalidade. No filme «Me, Me Again and Irene», a vitória do herói sobre o seu «mau «eu» torna-se ao mesmo tempo uma vitória sobre os seus próprios medos e inseguranças.

No filme Psicose, de Alfred Hitchcock, o comportamento do herói (ou vilão) Norman Bates se assemelha superficialmente ao comportamento de pessoas reais com transtorno dissociativo de identidade (DID). Você pode até encontrar artigos na Internet onde Norman é diagnosticado de acordo com os critérios da Classificação Internacional de Doenças (CID-10): a presença em uma pessoa de duas ou mais personalidades distintas, amnésia (uma pessoa não sabe o que o outra está fazendo enquanto possui o corpo), a ruptura da desordem para além dos limites das normas sociais e culturais, a criação de obstáculos para uma vida plena de uma pessoa. Além disso, tal transtorno não ocorre como resultado do uso de substâncias psicoativas e como sintoma de uma doença neurológica.

Hitchcock se concentra não no tormento interior do herói, mas no poder destrutivo das relações parentais quando elas se resumem ao controle e à posse. O herói perde a batalha por sua independência e o direito de amar outra pessoa, transformando-se literalmente em sua mãe, que destrói tudo o que pode tirar sua imagem da cabeça do filho.

Os filmes fazem parecer que os pacientes DID são criminosos em potencial. Mas não é assim

O sorriso no rosto de Norman nas últimas fotos parece realmente sinistro, porque claramente não pertence a ele: seu corpo é capturado por dentro e ele não tem chance de reconquistar sua liberdade.

E, no entanto, apesar do enredo e dos temas envolventes, esses filmes usam personalidade dividida apenas como uma ferramenta para criar uma história. Como resultado, a verdadeira desordem começa a ser associada a personagens de filmes perigosos e instáveis. A neurocientista Simone Reinders, pesquisadora de transtornos dissociativos, está muito preocupada com a impressão que as pessoas podem ter depois de assistir a esses filmes.

“Eles fazem parecer que os pacientes DID são criminosos em potencial. Mas isso não. Na maioria das vezes, eles tentam esconder seus problemas mentais.”

O mecanismo mental que gera a divisão é projetado para aliviar uma pessoa do estresse excessivo o mais rápido possível. “Todos nós temos um mecanismo universal de dissociação como resposta ao estresse severo”, explica o psicólogo clínico e terapeuta cognitivo Yakov Kochetkov. — Quando estamos com muito medo, parte de nossa personalidade — mais precisamente, o tempo que nossa personalidade ocupa — se perde. Muitas vezes, essa condição ocorre durante operações militares ou desastres: uma pessoa ataca ou voa em um avião em queda e se vê de lado.

“Muitas pessoas se dissociam com frequência, e algumas o fazem com tanta regularidade que a dissociação pode ser considerada seu principal mecanismo para funcionar sob estresse”, escreve a psicoterapeuta Nancy McWilliams.

Na série «Tão Diferente Tara» o enredo é construído em torno de como uma pessoa dissociada (artista Tara) resolve os problemas mais comuns: nos relacionamentos amorosos, no trabalho, com os filhos. Neste caso, as «personalidades» podem ser tanto fontes de problemas como salvadoras. Cada um deles contém um pedaço da personalidade da heroína: a devota dona de casa Alice personifica a disciplina e a ordem (Super-Ego), a menina Birdie – suas experiências de infância, e o rude veterano Buck – desejos «desconfortáveis».

Tentativas de entender como uma pessoa com transtorno dissociativo se sente são feitas em filmes como As Três Faces de Eva e Sybil (2007). Ambos são baseados em histórias reais. O protótipo de Eve do primeiro filme é Chris Sizemore, um dos primeiros pacientes conhecidos "curados" com esse distúrbio. Sizemore colaborou ativamente com psiquiatras e terapeutas, ela mesma preparou materiais para um livro sobre si mesma e contribuiu para a disseminação de informações sobre transtorno dissociativo.

Que lugar nesta série terá «Split»? Por um lado, a indústria cinematográfica tem sua própria lógica: é mais importante intrigar e entreter o espectador do que contar a ele como o mundo funciona. Por outro lado, onde mais se inspirar, se não na vida real?

O principal é perceber que a própria realidade é mais complexa e mais rica do que a imagem na tela.

Uma fonte: comunidade.worldheritage.org

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