Psicologia

Os psicólogos de hoje costumam comentar casos de estupro, suicídio ou tortura em locais de detenção. Como os membros das profissões de ajuda devem se comportar ao discutir situações de violência? A opinião da psicóloga familiar Marina Travkova.

Na Rússia, a atividade de um psicólogo não é licenciada. Em teoria, qualquer graduado de uma faculdade especializada de uma universidade pode se chamar psicólogo e trabalhar com pessoas. Legislativamente na Federação Russa não há segredo de um psicólogo, como o segredo de um médico ou advogado, não há um código ético único.

Escolas e abordagens psicoterapêuticas espontaneamente diferentes criam seus próprios comitês de ética, mas, via de regra, envolvem especialistas que já possuem uma postura ética ativa, refletindo sobre seu papel na profissão e sobre o papel do psicólogo na vida dos clientes e da sociedade.

Desenvolveu-se uma situação em que nem o grau científico do especialista assistencial, nem décadas de experiência prática, nem trabalho, mesmo em universidades especializadas do país, garantem ao destinatário da assistência psicológica que o psicólogo observará seus interesses e código ético.

Mas, ainda assim, era difícil imaginar que ajudar especialistas, psicólogos, pessoas cuja opinião é ouvida como especialista, se juntará à acusação dos participantes de flash mobs contra a violência (por exemplo, #não tenho medo de dizer) de mentiras, demonstratividade, desejo de fama e «exibicionismo mental». Isso nos faz pensar não apenas na ausência de um campo ético comum, mas também na ausência de reflexão profissional na forma de terapia pessoal e supervisão.

Qual é a essência da violência?

A violência, infelizmente, é inerente a qualquer sociedade. Mas a reação da sociedade a isso varia. Vivemos em um país com uma «cultura da violência» alimentada por estereótipos de gênero, mitos e tradicionais culpando a vítima e justificando o forte. Podemos dizer que esta é uma forma social da notória «síndrome de Estocolmo», quando a vítima se identifica com o violador, para não se sentir vulnerável, para não estar entre aqueles que podem ser humilhados e pisoteados.

Segundo as estatísticas, na Rússia, a cada 20 minutos, alguém se torna vítima de violência doméstica. Em cada 10 casos de violência sexual, apenas 10-12% das vítimas recorrem à polícia e apenas uma em cada cinco a polícia aceita uma declaração1. O estuprador muitas vezes não tem nenhuma responsabilidade. As vítimas vivem durante anos em silêncio e medo.

A violência não é apenas um impacto físico. Esta é a posição a partir da qual uma pessoa diz a outra: «Tenho o direito de fazer algo contigo, ignorando a tua vontade». Esta é uma meta-mensagem: “Você não é ninguém, e como você se sente e o que você quer não é importante”.

A violência não é apenas física (espancamentos), mas também emocional (humilhação, agressão verbal) e econômica: por exemplo, se você forçar um viciado a mendigar dinheiro até para as coisas mais necessárias.

Se o psicoterapeuta se permite assumir a posição de “culpa de si mesmo”, ele viola o código de ética

A agressão sexual é muitas vezes coberta com um véu romântico, quando a vítima é atribuída à atratividade sexual excessiva, e o agressor é uma incrível explosão de paixão. Mas não se trata de paixão, mas do poder de uma pessoa sobre outra. A violência é a satisfação das necessidades do estuprador, o arrebatamento do poder.

A violência despersonaliza a vítima. Uma pessoa sente-se um objeto, um objeto, uma coisa. Ele é privado de sua vontade, da capacidade de controlar seu corpo, sua vida. A violência separa a vítima do mundo e a deixa em paz, porque é difícil contar essas coisas, mas é assustador contar sem ser julgado.

Como um psicólogo deve responder à história de uma vítima?

Se uma vítima de violência decide falar sobre o que aconteceu na consulta com o psicólogo, então condenar, não acreditar ou dizer: “Você me machucou com sua história” é criminoso, pois pode trazer ainda mais danos. Quando uma vítima de violência decide falar em um espaço público, o que exige coragem, acusá-la de fantasias e mentiras ou intimidá-la com retraumatização não é profissional.

Aqui estão algumas teses que descrevem o comportamento profissionalmente competente de um especialista em ajuda em tal situação.

1. Ele acredita na vítima. Ele não se faz de especialista na vida de outra pessoa, o Senhor Deus, um investigador, um interrogador, sua profissão não é sobre isso. A harmonia e plausibilidade da história da vítima é uma questão de investigação, acusação e defesa. O psicólogo faz algo que até pessoas próximas à vítima podem não ter feito: acredita imediata e incondicionalmente. Apoia imediatamente e incondicionalmente. Dá uma mãozinha — imediatamente.

2. Ele não culpa. Ele não é a Santa Inquisição, a moralidade da vítima não é da sua conta. Seus hábitos, escolhas de vida, maneira de se vestir e escolher amigos não são da sua conta. O trabalho dele é apoiar. O psicólogo em hipótese alguma deve transmitir à vítima: «a culpa é dela».

Para uma psicóloga, apenas as experiências subjetivas da vítima, sua própria avaliação são importantes.

3. Ele não cede ao medo. Não esconda sua cabeça na areia. Não defende a sua imagem de um «mundo justo», culpando e desvalorizando a vítima da violência e o que lhe aconteceu. Tampouco cai em seus traumas, porque o cliente provavelmente já experimentou um adulto indefeso que ficou tão assustado com o que ouviu que optou por não acreditar.

4. Ele respeita a decisão da vítima de falar. Ele não diz à vítima que sua história é tão suja que ela tem o direito de ser ouvida apenas nas condições estéreis de um consultório particular. Não decide por ela o quanto ela pode aumentar seu trauma ao falar sobre isso. Não responsabiliza a vítima pelo desconforto de outras pessoas que acharão difícil ou difícil ouvir ou ler sua história. Isso já assustou seu estuprador. Isso e o fato de que ela perderá o respeito dos outros se contar. Ou machucá-los.

5. Ele não aprecia a extensão do sofrimento da vítima. A gravidade dos espancamentos ou o número de episódios de violência é prerrogativa do investigador. Para a psicóloga, apenas as experiências subjetivas da vítima, sua própria avaliação, são importantes.

6. Ele não liga sofre uma vítima de violência doméstica em nome de crenças religiosas ou da ideia de preservar a família, não impõe sua vontade e não dá conselhos, pelos quais não é responsável, mas a vítima da violência.

Só há uma maneira de evitar a violência: parar o próprio estuprador

7. Ele não oferece receitas de como evitar a violência. Não satisfaz sua curiosidade ociosa descobrindo informações que dificilmente são necessárias para prestar assistência. Ele não oferece à vítima para analisar seu comportamento até os ossos, para que isso não aconteça com ela novamente. Não inspira a vítima com a ideia e não apóia tal, se a própria vítima a tiver, que o comportamento do estuprador dependa dela.

Não faz referência à sua infância difícil ou organização espiritual sutil. Sobre as deficiências da educação ou a influência nociva do meio ambiente. A vítima de abuso não deve ser responsável pelo agressor. Só há uma maneira de evitar a violência: parar o próprio estuprador.

8. Ele se lembra do que a profissão o obriga a fazer. Espera-se que ele ajude e tenha conhecimento especializado. Ele entende que sua palavra, mesmo dita não dentro das paredes do escritório, mas no espaço público, afeta tanto as vítimas de violência quanto aqueles que querem fechar os olhos, tapar os ouvidos e acreditar que as vítimas inventaram tudo, que eles mesmos são os culpados.

Se o psicoterapeuta se permite assumir a posição de “culpa de si mesmo”, ele viola o código de ética. Caso o psicoterapeuta se pegue em um dos pontos acima, ele precisa de terapia pessoal e/ou supervisão. Além disso, se isso acontecer, desacredita todos os psicólogos e mina os fundamentos da profissão. Isso é algo que não deveria ser.


1 Informações do Centro de Caridade Independente de Assistência a Sobreviventes de Violência Sexual «Irmãs», sister-help.ru.

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